Perfazem-se hoje 120 anos do nascimento de Mário de Sá-Carneiro, um escasso quarto de século de uma vida marcada essencialmente pela dispersão do eu no mundo: uma crise de personalidade que se traduziu numa existência que privilegiou as experiências sensoriais e as vivências extravagantes à busca de um sentido determinado para a (sua) vida.
Perdi-me dentro de mimPorque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.
Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida... (...) in, Dispersão
A sua produção literária denota influência das correntes estéticas que marcaram a sua época: desde o decadentismo e do saudosismo do final do século XIX às correntes de vanguarda que constituem o programa do Modernismo apresentado por Fernando Pessoa, cúmplice de uma singular experimentação de vida e confidente das limitações sentidas por Mário de Sá-Carneiro para estar/continuar “Nela”, como se pode perceber pela leitura das cartas que escreve a F.P., aquando das suas permanências em Paris.
“ Paris, ano de 1912. Último Dia
Meu querido amigo,
Você vai-me perdoar. Á sua admirável carta, à sua longa carta, eu vou-lhe responder brevemente, desarticuladamente. É que no instante actual atravesso um período de «anestesiamento» que me impede de explanar ideias. Este «anestesiamento» resume-se em levar uma vida oca, inerte, humilhante – e doce contudo. (…) saio de manhã, dou longos passeios, vou aos teatros, Passo horas nos cafés. Consigo expulsar a alma. E a vida não me dói. (…) Um dia belo da minha vida foi aquele em que travei conhecimento consigo – Eu ficara conhecendo alguém – E não só uma grande alma; também um grande coração. Deixe-me dar-lhe um abraço, um desses abraços onde vai toda a nossa alma e que selam uma amizade leal e forte. (…)”
Em 16 de Fevereiro de 1916 Mário de Sá-Carneiro escreve a F. Pessoa e fala-lhe do aprofundamento da sua descrença, em tudo, deixando-lhe apenas “… A verdade nua e crua.” que se traduz no poema, que consta da missiva enviada ao amigo:
Fim
Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes -
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas.
Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza:
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro ... ( Mário de Sá-Carneiro)
A despedida, no dia em que pôs termo à vida, ficou registada num pedaço de papel que dobrou em quatro, desta feita mais em jeito de recado do que de missiva, e onde se podia ler simplesmente o seguinte:
«Um grande, grande adeus do seu pobre
Mario de Sá-Carneiro
Paris 26 abril 1916»
Destaca-se um poema que consideramos mais significativo e de que registamos excertos:
Quase
Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minhalma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...
Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Listas de som avançam para mim a fustigar-me
Em luz.
Todo a vibrar, quero fugir... Onde acoitar-me?...
Os braços duma cruz
Anseiam-se-me, e eu fujo também ao luar.
Perdi-me dentro de mim
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.
Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida... (...) in, Dispersão
A sua produção literária denota influência das correntes estéticas que marcaram a sua época: desde o decadentismo e do saudosismo do final do século XIX às correntes de vanguarda que constituem o programa do Modernismo apresentado por Fernando Pessoa, cúmplice de uma singular experimentação de vida e confidente das limitações sentidas por Mário de Sá-Carneiro para estar/continuar “Nela”, como se pode perceber pela leitura das cartas que escreve a F.P., aquando das suas permanências em Paris.
“ Paris, ano de 1912. Último Dia
Meu querido amigo,
Você vai-me perdoar. Á sua admirável carta, à sua longa carta, eu vou-lhe responder brevemente, desarticuladamente. É que no instante actual atravesso um período de «anestesiamento» que me impede de explanar ideias. Este «anestesiamento» resume-se em levar uma vida oca, inerte, humilhante – e doce contudo. (…) saio de manhã, dou longos passeios, vou aos teatros, Passo horas nos cafés. Consigo expulsar a alma. E a vida não me dói. (…) Um dia belo da minha vida foi aquele em que travei conhecimento consigo – Eu ficara conhecendo alguém – E não só uma grande alma; também um grande coração. Deixe-me dar-lhe um abraço, um desses abraços onde vai toda a nossa alma e que selam uma amizade leal e forte. (…)”
Cf. Mário de Sá-Carneiro, Correspondência com Fernando Pessoa, vol. I, edição de Teresa Sobral Cunha, 2003, p. 24
Em 16 de Fevereiro de 1916 Mário de Sá-Carneiro escreve a F. Pessoa e fala-lhe do aprofundamento da sua descrença, em tudo, deixando-lhe apenas “… A verdade nua e crua.” que se traduz no poema, que consta da missiva enviada ao amigo:
Fim
Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes -
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas.
Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza:
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro ... ( Mário de Sá-Carneiro)
A despedida, no dia em que pôs termo à vida, ficou registada num pedaço de papel que dobrou em quatro, desta feita mais em jeito de recado do que de missiva, e onde se podia ler simplesmente o seguinte:
«Um grande, grande adeus do seu pobre
Mario de Sá-Carneiro
Paris 26 abril 1916»
Destaca-se um poema que consideramos mais significativo e de que registamos excertos:
Quase
Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minhalma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...
Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Listas de som avançam para mim a fustigar-me
Em luz.
Todo a vibrar, quero fugir... Onde acoitar-me?...
Os braços duma cruz
Anseiam-se-me, e eu fujo também ao luar.
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