Retrato do artista quando jovem
Quando por volta dos oito anos de idade resolvi dedicar-me à literatura imaginava que todos os escritores sem excepção se pareciam com Sandokan Soberano da Malásia.
(meu herói de então e de agora)
quer dizer, lindíssimos, morenos, de barba, olhos verdes e um rubi na testa a meio do turbante. O facto de ser loiro, de olho azul e sem rubi preocupava-me e cheguei a pensar em esfregar o cabelo com graxa de sapatos para escurecer as melenas: ainda experimentei na franja, fiquei igualzinho a um limpa-chaminés anão, perguntaram-me
- O menino é parvo ou faz-se? (...)
cheguei à conclusão que os escritores afinal eram todos cavalheiros gordos a chuparem barquilhos, de fato de linho branco, pasmados para as toiltes da Marijú. Abandonei o plano de me tornar Sandokan e passei a comer cinco carcaças com geleia de cereja ao pequeno almoço na esperança de ganhar barriga. (...)
e eis que descubro no primeiro ano do liceu (...)
um professor de ruga atormentada na testa como se os rins da alma lhe doessem que atravessava o pátio do recreio torcido por incómodos metafísicos. Um colega mais instruído revelou-me que o professor se chamava Vergílio Ferreira e publicava livros: observei-lhe melhor as úlceras existenciais (...)
o meu pai mostrou-me o retrato de Byron e eu decidi partir no dia seguinte para a Grécia e morrer em combate a recitar versos alexandrinos. Como não tinha dinheiro que chegasse par ao avião fui de camioneta a Vila Franca onde não existia uma batalha sequer. (...)"
António Lobo Antunes, Livro de Crónicas, pp. 203-206
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